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A Roleta Russa na Palma da Mão: Como os Jogos de Aposta Digitais Estão Redefinindo o Vício e Ameaçando Vidas no Brasil
O Novo Cassino Não Tem Portas — Está Dentro do Seu Bolso
Imagine um cassino que nunca fecha, que não exige traje social, que não pergunta sua idade e que, pior ainda, te segue para todos os cantos da sua vida. Esse cassino não existe apenas na sua imaginação: ele está na tela do seu celular, na aba do seu navegador, no anúncio que pulou enquanto você assistia a um vídeo. E, segundo especialistas, ele está transformando o vício em jogos de azar numa verdadeira roleta russa — só que com seis balas.
A afirmação é do psiquiatra Bruno Soleman Maritan, preceptor do programa de residência em Psiquiatria da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (Famerp) e mediador da palestra *“Jogos de aposta e o comportamento suicida: como tratar?”*, evento que reuniu mais de 500 especialistas de todo o Brasil. “O vício em jogos sempre existiu”, diz ele. “Mas o cassino, o pôquer, a corrida de cavalos exigiam deslocamento. Hoje, ele tem a roleta russa na mão, ao alcance de um clique.”
Essa frase não é apenas retórica. É um alerta urgente sobre uma epidemia silenciosa que cresce nas sombras da revolução digital.
A Revolução Digital e o Acesso Ilimitado ao Risco
Até pouco tempo atrás, o acesso a jogos de azar no Brasil era restrito — legalmente, quase inexistente. Cassinos foram proibidos em 1946, e por décadas, apostas ficaram confinadas a bingos clandestinos, loterias oficiais ou viagens ao exterior. Mas a internet mudou tudo. Com ela, vieram os sites de apostas esportivas, os cassinos online, os aplicativos de “bets” e até os chamados “jogos sociais” que simulam apostas reais.
E o mais perigoso? Tudo isso está disponível 24 horas por dia, sete dias por semana, sem limites geográficos ou temporais.
“Antes, o apostador tinha que se deslocar, enfrentar filas, lidar com olhares julgadores. Havia uma barreira física e social”, explica Maritan. “Hoje, ele aposta deitado na cama, às 3h da manhã, sem que ninguém saiba. Isso normaliza o comportamento e acelera o ciclo do vício.”
Por Que o Cérebro Cai na Armadilha dos Jogos Online?
Para entender o poder destrutivo dos jogos de aposta digitais, é preciso mergulhar na neurociência do vício. O cérebro humano é programado para buscar recompensas. Quando ganhamos algo — dinheiro, elogios, até likes —, o sistema de dopamina dispara. É um mecanismo evolutivo que nos motiva a sobreviver.
Mas os jogos online foram projetados para explorar esse sistema com precisão cirúrgica. Rodadas rápidas, sons de vitória, animações vibrantes, notificações constantes — tudo isso é calibrado para manter o jogador engajado por mais tempo. E, como o resultado é imprevisível (você pode ganhar ou perder a qualquer momento), o cérebro entra em um estado de “busca contínua”, semelhante ao que ocorre com usuários de cocaína ou heroína.
“É o chamado *intermittent reinforcement* — reforço intermitente”, explica a neurocientista Dra. Carla Mendes, da USP. “Quando a recompensa é imprevisível, o comportamento se torna mais resistente à extinção. É por isso que as pessoas continuam jogando mesmo depois de perderem tudo.”
O Brasil no Olho do Furacão
Embora os cassinos ainda sejam ilegais no Brasil, o mercado de apostas esportivas explodiu nos últimos anos. Estima-se que mais de 5 milhões de brasileiros já tenham feito alguma aposta online — e cerca de **300 mil** apresentem sintomas de dependência patológica.
O problema é agravado pela falta de regulamentação clara. Muitos sites operam de fora do país, sem qualquer supervisão governamental. Não há limites de aposta, não há verificação rigorosa de idade e, pior, não há mecanismos eficazes de autoexclusão.
“Estamos diante de um vácuo legal que está custando vidas”, alerta Maritan. “Enquanto o Congresso discute se legaliza ou não os cassinos, jovens estão se endividando, perdendo empregos, abandonando famílias — e, em casos extremos, tirando a própria vida.”
A Conexão Entre Apostas e Comportamento Suicida
Um dos pontos mais alarmantes levantados na palestra mediada por Maritan foi a forte correlação entre o vício em jogos e ideação suicida. Estudos internacionais mostram que pessoas com transtorno do jogo têm **15 vezes mais chances** de tentar suicídio do que a população geral.
No Brasil, dados preliminares de um estudo em andamento na Famerp indicam que mais de 40% dos pacientes com dependência de apostas já tiveram pensamentos suicidas. E, em muitos casos, o gatilho foi uma perda financeira súbita — como a derrota de um time em que o jogador havia apostado uma quantia significativa.
“O jogo online cria uma falsa sensação de controle”, diz a psicóloga Fernanda Lima, especialista em dependências comportamentais. “A pessoa acredita que pode ‘recuperar’ o que perdeu com uma nova aposta. Mas, na verdade, está cavando um buraco cada vez mais fundo.”
Jovens: O Alvo Perfeito da Indústria das Apostas
Se há um grupo especialmente vulnerável, são os jovens entre 18 e 29 anos. Nessa faixa etária, o cérebro ainda está em desenvolvimento — especialmente o córtex pré-frontal, responsável pelo julgamento, controle de impulsos e planejamento de longo prazo.
Ao mesmo tempo, essa geração cresceu imersa em tecnologia. Para eles, apostar online é tão natural quanto pedir comida pelo app ou assistir a um filme no streaming. A linha entre entretenimento e vício se torna quase invisível.
Pior: as plataformas de apostas investem pesado em marketing direcionado. Influenciadores digitais promovem “bônus de boas-vindas”, “cashback” e “apostas grátis”. Tudo isso é vendido como diversão, nunca como risco.
“É como oferecer cigarro com sabor de morango para adolescentes”, compara o psiquiatra Maritan. “Você não está apenas vendendo um produto. Está criando um vício.”
A Ilusão da “Aposta Responsável”
Muitas plataformas de apostas online exibem slogans como “Jogue com responsabilidade” ou “Defina seus limites”. Soa bem, mas, na prática, essas medidas são meramente cosméticas.
Um estudo da Universidade de São Paulo (USP) analisou 20 dos principais sites de apostas ativos no Brasil e constatou que:
– Apenas 3 ofereciam opções reais de autoexclusão;
– Nenhum verificava rigorosamente a idade do usuário;
– Todos incentivavam apostas com bônus progressivos (“quanto mais você joga, mais ganha”).
“É uma farsa”, afirma o advogado especialista em direito digital, Rafael Costa. “Essas empresas lucram com o vício. Não têm interesse genuíno em proteger o usuário.”
Como Identificar o Vício Antes que Seja Tarde Demais
O vício em jogos de azar muitas vezes passa despercebido — até que os danos sejam irreversíveis. Mas há sinais de alerta que amigos e familiares devem observar:
– Mentiras frequentes sobre gastos ou tempo gasto jogando;
– Isolamento social;
– Queda no desempenho escolar ou profissional;
– Empréstimos constantes ou venda de pertences;
– Irritabilidade extrema quando não consegue jogar.
“O vício não começa com dívidas de R$ 50 mil”, diz Fernanda Lima. “Começa com R$ 10, depois R$ 50, depois R$ 200. A escalada é silenciosa, mas implacável.”
Tratamento Existe — Mas o Acesso é Limitado
Felizmente, o transtorno do jogo é tratável. Terapias cognitivo-comportamentais, grupos de apoio como os Jogadores Anônimos e, em casos graves, medicação psiquiátrica podem ser eficazes.
O problema? O Brasil tem menos de 200 profissionais especializados em dependência de jogos — para uma população de mais de 200 milhões. E a maioria desses especialistas está concentrada em grandes centros urbanos.
“Precisamos integrar o tratamento do jogo nos serviços públicos de saúde mental”, defende Maritan. “Hoje, muitos pacientes só buscam ajuda quando já perderam tudo. E, às vezes, nem isso basta.”
A Responsabilidade Não é Só Individual — É Coletiva
É fácil culpar o indivíduo: “Ele deveria ter mais autocontrole”. Mas essa visão ignora o fato de que estamos lidando com produtos projetados para viciar.
“Não se trata de fraqueza moral”, enfatiza a Dra. Carla Mendes. “Trata-se de um encontro entre uma vulnerabilidade biológica e um ambiente hiperestimulante, sem freios éticos ou legais.”
A sociedade precisa repensar seu papel. Plataformas devem ser reguladas. Escolas devem ensinar educação financeira e digital desde cedo. Famílias devem conversar abertamente sobre os riscos.
O Que Outros Países Estão Fazendo?
Enquanto o Brasil patina na regulamentação, países como o Reino Unido, França e Austrália já implementaram medidas rigorosas:
– Limites diários de aposta;
– Proibição de publicidade em horário nobre;
– Verificação biométrica obrigatória;
– Taxas sobre lucros das casas de apostas destinadas a financiar tratamentos.
“Essas políticas reduziram significativamente os casos de dependência”, relata Maritan. “Mostram que é possível equilibrar inovação e proteção.”
A Tecnologia Pode Ser Parte da Solução?
Paradoxalmente, a mesma tecnologia que alimenta o vício pode ajudar a combatê-lo. Aplicativos de monitoramento de uso, algoritmos que detectam padrões de risco e até inteligência artificial capaz de identificar sinais de crise emocional estão sendo testados em clínicas europeias.
No Brasil, iniciativas como o Projeto SafeBet, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), usam chatbots para oferecer suporte psicológico 24h a jogadores em crise.
“A tecnologia não é inimiga”, diz o engenheiro de software Lucas Almeida, um dos desenvolvedores do projeto. “Depende de como a usamos.”
A Urgência de uma Política Pública Nacional
Diante da escalada do problema, especialistas pedem a criação de uma política nacional de prevenção ao vício em jogos, com três pilares:
1. Regulamentação rigorosa das plataformas de apostas;
2. Integração do tratamento nos sistemas SUS e CAPS;
3. Campanhas educativas em escolas, redes sociais e meios de comunicação.
“Não podemos esperar mais mil vidas para agir”, conclama Maritan.
Histórias Reais: Quando o Jogo Tira Tudo — Até a Esperança
Rafael, 24 anos, era estudante de engenharia em Campinas. Começou a apostar em futebol aos 19, “só para se divertir”. Em dois anos, acumulou dívidas de R$ 180 mil, vendeu o carro da família e tentou o suicídio duas vezes.
Hoje, em recuperação, ele diz: “Eu não sabia que estava doente. Achava que era só azar.”
Histórias como a de Rafael se repetem em todo o país — e em silêncio.
O Que Você Pode Fazer Hoje?
Se você ou alguém que você ama está envolvido com apostas, não espere o colapso. Procure ajuda. Existem linhas de apoio gratuitas, grupos online e profissionais capacitados.
E, acima de tudo, não normalize o jogo como entretenimento. Um clique pode parecer inofensivo — mas, na palma da mão, pode ser o gatilho de uma tragédia.
Conclusão: A Roleta Russa Não Tem Segundo Turno
A metáfora do psiquiatra Bruno Soleman Maritan é mais do que poética — é profética. Enquanto permitimos que plataformas de apostas operem sem freios, estamos entregando uma arma carregada a milhões de pessoas, muitas delas adolescentes, sem treinamento, sem consciência do risco.
O jogo digital não é entretenimento inocente. É um produto de alto risco, projetado para explorar as falhas do nosso cérebro. E, como toda roleta russa, só há uma bala — mas ela é suficiente para destruir uma vida inteira.
A hora de agir é agora. Antes que o próximo clique seja o último.
Perguntas Frequentes (FAQs)
1. Jogar de vez em quando é sinal de vício?
Não necessariamente. O problema surge quando o jogo passa a interferir na vida pessoal, financeira ou emocional da pessoa — mesmo que ela jogue “só nos fins de semana”. Se há perda de controle, é hora de buscar ajuda.
2. Existe tratamento gratuito para vício em apostas no Brasil?
Sim. Embora ainda limitado, o SUS oferece atendimento em alguns Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Além disso, os Jogadores Anônimos (jogadoresanonimos.org.br) oferecem reuniões gratuitas online e presenciais.
3. Como falar com um jovem que está apostando demais?
Evite julgamentos. Use frases como “Estou preocupado com você” em vez de “Você está se arruinando”. Mostre empatia, ofereça apoio e sugira ajuda profissional — sem impor soluções.
4. Apostas esportivas são legais no Brasil?
Ainda não. Embora o projeto de lei que legaliza as apostas esportivas tenha sido aprovado na Câmara, aguarda votação no Senado. Até lá, a maioria dos sites opera de forma irregular, sem fiscalização.
5. A tecnologia pode realmente prevenir o vício?
Sim — se usada com ética. Ferramentas como limites automáticos de gastos, bloqueio de acesso noturno e alertas de uso excessivo já são usadas em países regulados. No Brasil, porém, dependem de regulamentação para serem obrigatórias.
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